Archives de catégorie : 1 avril 2020

São paulo – dia 15

01.04

Está difícil escolher leituras. Agora que terminei minhas leituras anteriores estou com dificuldade em começar outras. Soma-se à dificuldade de escolher, a dificuldade de me concentrar. Abri alguns livros, tentei levar algumas frases. Nada vingou.

E, então, um pouco aleatoriamente e intuitivamente, decidi reler o meu livro preferido do final da adolescência: “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”. E me deparei com um trecho magnífico, que fez meu corpo estremecer:

“É tão vasta a noite na montanha. Tão despovoada. A noite espanhola tem o perfume e o eco duro do sapateado da dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se ausente. Mas a noite de Berna tem o silêncio.
Tenta-se em vão ler para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo, inventar um programa, frágil ponte que mas nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afinam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo possível. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio? Desse silêncio sem lembranças de palavras. Se és morte, como te abençoar?
É um silêncio que não dorme (…) Ele é vazio e sem promessa. (…)
Pode-se tentar enganá-lo também. Deixa-se como por acaso livro da cabeceira cair no chão. Mas – horror – o livro cai dentro do silêncio e se perde na muda e parada voragem deste. E se um pássaro enlouquecido cantasse? Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio. O que mais se parecia, no domínio do som, com o silêncio, era uma flauta. (…)
Depois nunca mais se esquece. Inútil fugir até para outra cidade. Pois quando menos se espera pode-se reconhecê-lo – de repente. Ao atravessar a rua no meio das buzinas dos carros. Entre uma gargalhada fantasmagórica e outra. Depois de uma palavra dita. Às vezes no próprio coração da palavra se reconhece o Silêncio. Os ouvidos se assombram, o olhar se esgazeia – ei-lo.”
(In: “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector)